Assim os impérios
cometem suicídio
Ao
assassinar Soleimani e ameaçar Teerã, Trump e seu entorno gozam dias de
ilusória potência. Logo enxergarão que, em busca de bode expiatório para 20
anos de guerras desastrosas, afundaram Washington num atoleiro muito mais
profundo
Por Chris Hedges |
Tradução: Antonio Martins
O assassinato, pelos Estados Unidos, do general Qassem
Soleimani, chefe da força de elite Quds do Irã, deflagrará ataques
retaliatórios múltiplos contra alvos norte-americanos por parte dos xiitas, que
são a maioria no Iraque. Ativará insurgentes e grupos paramilitares apoiados
pelo Irã no Líbano, Síria e outras partes do Oriente Médio. O caos de
violência, Estados falidos e guerra, resultados de duas décadas de insanidades
e erros dos EUA na região, vai converter-se numa conflagração ainda mais vasta
e perigosa. As consequências são dramáticas. Além de os norte-americanos se
verem sob cerco no Iraque, e talvez expulsos – resta apenas uma força de 3,2
mil soldados no Iraque, todos os cidadãos foram aconselhados a deixar o país
“imediatamente” e os serviços consulares, fechados – a situação pode descambar
para uma guerra direta contra o Irã. O Império Americano, parece, não morrerá
com um lamento, mas com uma explosão.
A execução de Soleimani, morto por mísseis de um drone Reaper
MQ-9, também tirou a vida de Abu Mahdi al-Muhandis, o vice-comandante dos
grupos apoiados pelo Irã no Iraque – conhecidos como Forças de Mobilização
Popular –, além de outros líderes de milícias xiitas iraquianas. O ataque pode
inflar temporariamente a sorte dos dois arquitetos do assassinato, Donald Trump
e o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. Mas é um ato de suicídio
imperial pelos EUA. Não há chance de desfecho positivo. Abre-se a possibilidade
de um cenário de tipo Armageddon, desejado pelos ramos lunáticos da direita
cristã.
Atingido por guerra, o Irã usaria seus mísseis antinavio
fornecidos pelos chineses, suas minas e sua artilharia costeira para fechar o
Estreito de Ormuz, corredor de 20% do suprimento de petróleo do mundo. Os
preços do combustível poderiam dobrar, talvez triplicar, devastando a economia global.
Os ataques retaliatórios do Irã contra Israel e contra as instalações militares
dos EUA no Iraque deixariam centenas, talvez milhares, de mortos. Os xiitas na
região, da Arábia Saudita ao Paquistão, veriam um ataque ao Irã como uma guerra
religiosa contra o xiismo. Os 2 milhões de xiitas na Arábia Saudita,
concentrados na Província do Leste, rica em petróleo; a maioria xiita no Iraque
e as comunidades xiitas no Bahrain, Paquistão e Turquia, iriam voltar-se em
fúria contra os aliados vacilantes dos EUA. Haveria um aumento de ataques
terroristas, inclusive em solo norte-americano, com vasta sabotagem da produção
de petróleo no Golfo Pérsico. No sul do Líbano, o Hezbollah renovaria ataques
contra o norte de Israel. A guerra deflagraria um longo e crescente conflito
regional que, ao seu fim, liquidaria o Império Americano e deixaria montanhas
de corpos e ruínas fumegantes. Só um milagre poderá retirar os EUA desta
autoimolação ao estilo do Dr. Strangelove.
O Irã, que prometeu “áspera retaliação”, já patina sob as
sanções econômicas brutais impostas pelo governo Trump ao se retirar
unilateralmente, em 2018, do acordo sobre as armas nucleares do Irã.
Ampliam-se, ao mesmo tempo, as tensões no Iraque, entre os EUA e a maioria
xiita. Em 27 de dezembro, foguetes Katyusha foram disparados contra uma base
militar em Kirkuk, onde as forças dos EUA estavam estacionadas. Um civil
norte-americano que trabalhava para empresas mercenárias foi morto; e diversos
militares, feridos. Os EUA responderam em 29/12, bombardeando bases do grupo
Kataib Hezbollah, apoiado pelo Irã. Dois dias mais tarde, milícias apoiadas
pelo Irã atacaram a embaixada norte-americana em Bagdá, vandalizando e
destruindo partes do edifício e provocando seu fechamento. Mas este ataque logo
parecerá brincadeira de crianças.
Após a invasão e ocupação norte-americana em 2003, o Iraque foi
destruído enquanto país unificado. Sua infraestrutura, antes moderna, está em
ruínas. O abastecimento de energia e água é, quando muito, errático. Há alto
desemprego e descontentamento com a corrupção governamental generalizada, que
levou a protestos sangrentos. Milícias beligerantes e facções étnicas
entricheiraram-se em enclaves antagônicos e conflagrados.
Ao mesmo tempo, a guerra do Afeganistão está perdida para os
EUA, como mostraram em detalhe os Afghanistan
Papers, publicados pelo Washington
Post. A Líbia é um Estado falido. O Iêmen, após cinco anos de
bombardeios sauditas ininterruptos e de um bloqueio, padece um dos piores
desastres humanitários do planeta. Os rebeldes “moderados” que os EUA
financiaram e armaram na Síria, ao custo de 500 milhões de dólares, instigaram
um cenário sem lei de terror, para serem batidos e expulsos do país. O custo
monetário deste delírio, a estupidez maior na história norte-americana, é algo
entre 5 e 7 trilhões de dólares.
Mas então, qual o porquê da guerra contra o Irã. Por que
abandonar um acordo nuclear que Teerã não violou? Por que demonizar um governo
que é o inimigo mortal do Talibã e de outros grupos jihadistas, inclusive a
Al-Qaeda e o Estado Islâmico? Por que sabotar a aliança de
facto com o Irã, no Iraque e Afeganistão. Por que
desestabilizar ainda mais uma região já perigosamente volátil?
Os generais e políticos que lançaram e mantiveram estas guerras
não estão dispostos a ser responsabilizados pelos pesadelos que criaram. Eles
precisam de um bode expiatório. É o Irã. As centenas de milhares de mortos e
aleijados, incluindo ao menos 200 mil civis, e os milhões expulsos de suas
casas para campos de refugiados, não podem ser o resultado das políticas
desorientadas e falidas dos EUA. A proliferação de grupos e milícias jihadistas
radicais, muitos dos quais foram inicialmente treinados por Washington, assim
como os incessantes ataques terroristas em todo o mundo, precisam ser culpa de
outros. Os generais, a CIA, os mercenários e os fabricantes de armas que enriqueceram
com estes conflitos; os políticos como George W. Bush, Barack Obama e Donald
Trump, além dos “especialistas” e intelectuais-celebridades que atuam como
líderes de torcida em favor da guerra sem fim, convenceram a si mesmos e querem
convencer o mundo de que o Irã é responsável pela catástrofe.
O caos e instabilidade que os EUA desencadearam no Oriente
Médio, especialmente no Iraque e Afeganistão, deixaram o Irã como país
dominante na região. Washington empoderou seu nêmesis. Não tem outra ideia
sobre como reverter seu erro exceto atacar o Irã.
Trump e Netanyahu, assim como o príncipe coroado saudita
Mohammed bin Salman, estão envolvidos em escândalo. Acreditam que uma nova
guerra irá desviar a atenção de suas crises externas e domésticas. Mas
falta-lhes tanto uma estratégia racional para a guerra contra o Irã como faltou
para as guerras no Afeganistão, Iraque, Líbia, Yêmen e Síria. Os aliados
europeus, alienados por Trump quando este abandonou o acordo nuclear com o Irã,
não cooperarão, se Washington for à guerra contra Teerã. O Pentágono não possui
as centenas de milhares de soldados que seriam necessários para atacar e ocupar
o Irã. E é hilária a visão do governo Trump, segundo a qual o grupo de
resistência iraniano Mujahedeen-e-Khalq (MEK) – marginal e desacreditado, que
lutou com Saddam Hussein na guerra contra seu próprio país e é visto pela
maioria dos iranianos como composto de traidores – é uma contra-força viável ao
regime iraniano.
O Direito internacional, assim como os direitos de 80 milhões de
seres humanos no Irã, é tão ignorado como os direitos dos povos do Afeganistão,
Iraque, Líbia, Iêmen e Síria. Os iranianos, seja qual for seu sentimento sobre
seu regime despótico, não veriam os EUA como aliados ou libertadores. Eles não
querem ser ocupados. Eles resistiriam.
Uma guerra contra o Irã seria vista em toda a região como uma
guerra contra o xiismo. Mas são cálculos que os ideólogos, que sabem pouco
sobre o instrumento da guerra, e ainda menos sobre as culturas ou povos que
tentam dominar, não podem dar-se conta. Um ataque ao Irã não teria mais sucesso
que os ataques israelenses ao Líbano em 2006, que foram incapazes de quebrar o
Hezbollah e uniram a maior parte dos libaneses em apoio àquele grupo militante.
Os bombardeios de Israel não pacificaram 4 milhões de libaneses. O que ocorrerá
se os EUA começarem a atingir um país de 80 milhões de pessoas, cujo território
é três vezes maior que o da França?
Os Estados Unidos, como Israel, tornaram-se um Estado-pária que
ameaça, viola e se afasta do direito internacional. Lançam guerras
“preventivas”, que sob o direito internacional são definidas como “crimes de
agressão”, baseados em evidências fabricadas. Os norte-americanos, como
cidadãos, precisam tornar seu governo responsável por tais crimes. Se não o
fizerem, serão cúmplices na construção de uma nova ordem mundial que teria
terríveis consequências. Seria um mundo sem direitos, acordos e leis. Seria um
mundo em que qualquer nação, de um Estado-vilão nuclearizado a uma potência
imperial, poderia invocar suas leis domésticas para anular suas obrigações com
os demais. Tal nova ordem desfaria cinco décadas de cooperação internacional –
em grade parte estabelecida com apoio dos EUA – e nos mergulharia num pesadelo
hobbesiano. A diplomacia, a cooperação ampla, os tratados e a lei, todos estes
mecanismos criados para civilizar a comunidade global, seriam substituídos pela
selvageria.
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