A execução de
Baghdadi e o autoengano do Ocidente
Trump
refestela-se após ter eliminado o líder fanático e sanguinário do Estado
Islâmico. Mas sua morte pode resultar em um reerguimento do grupo terrorista,
impulsionado pela perseguição dos árabes sunitas no Iraque e Síria
Por Patrick Cockburn |
Tradução: Inês Castilho
No auge da insurgência liderada pela Al-Qaeda no Iraque, em
2006-07, os comandantes dos EUA, cujas tropas vinham sofrendo graves baixas por
bombas na estrada, desenvolveram uma estratégia. Procuraram identificar, matar
ou capturar os líderes das células que implantavam bombas de fabricação
caseira, por crer que isso paralisaria o bombardeio.
Muitos desses alvos de alto valor foram rastreados e executados,
mas a estratégia mostrou-se mal concebida e contraproducente. Um estudo com 200
casos de líderes de células mortos ou presos em 2007 demonstrou que, no mês
seguinte à eliminação do indivíduo, o número de ataques de bombas caseiras na
área de operação de sua célula aumentava de 20% a 40%.
Isso acontecia porque a al-Qaeda, compreendendo que seus líderes
militares locais teriam uma baixa taxa de sobrevivência, tinha sempre um
substituto pronto a assumir o controle, 24 horas após cada queda. Ávidos por
mostrar sua destreza militar, esses novos comandantes faziam mais ataques que
seu antecessor, que frequentemente estava esgotado das batalhas ou já não sabia
como renovar a luta contra o inimigo. (As informações sobre a estratégia
contraproducente dos alvos de alto valor dos EUA no Iraque vêm do livro de meu
irmão Andrew Cockburn: Kill Chain: Drones and the Rise of
High-Tech Assassins [Cadeia da morte: Drones e o surgimento de
assassinos de alta tecnologia].)
É bom manter essa história em mente ao considerar as prováveis
consequências da execução do principal líder do Isis, Abu Baqr al-Baghdadi, no
noroeste da Síria, em 27 de outubro. Críticos e analistas reagiram com cautela
a sua morte. Dizem que trata-se de um golpe simbólico grave ao Isis, mas não
fatal, e que o movimento não abandonará os negócios tão cedo.
Mas há um jeito menos tranquilizador de encarar o assassinato de
Baghdadi. Ele pode vir a fazer mais mal que bem, visto que as ações do líder
eram comprovadamente desastrosas. Ao declarar guerra ao mundo inteiro, sua
derrota era certa. Sua eliminação pode ser o que o Isis precisava para se renovar.
Assim como aconteceu com os fabricantes de bombas da Al-Qaeda no Iraque, há
doze anos, um novo líder pode ser mais perigoso, porque evitará os erros
colossais de Baghdadi, relançando o movimento com outra aparência e outros
modos de operar.
O Isis, com a liderança de Baghdadi, tinha alguns pontos fortes:
o fanatismo religioso, aliado à perícia militar, atribuia-lhe uma força de
combate extraordinária. Mostrou-se poderosamente atraente às populações árabes
sunitas perseguidas no Iraque e na Síria, que viviam sob governos que odiavam.
Mas, também sob Baghdadi, esses árabes sunitas perceberam que
viviam sob uma tirania, na qual a menor transgressão religiosa ou social era
punida com espancamento e execução. Era um estado governado pelo medo: no ano
passado, estive na antiga capital de facto do
Isis, Raqqa, e ali conheci Abdel Salaam, um sobrevivente dos três longos anos
de dominação do Isis. “Daesh [o Isis] está em nossos corações e mentes”, dizia.
“Crianças de cinco anos viram mulheres serem apedrejadas até a morte e cabeças
cortadas sendo expostas penduradas em lanças no centro da cidade.” Encontrei as
grades com lanças de que ele falava, inclinadas para a frente pelo peso das
cabeças decapitadas.
Esta não é uma experiência que os árabes sunitas do Iraque e da
Síria desejam repetir. Além disso, com toda a sua disciplina à base de
brutalidade, o Estado Islâmico foi incapaz de defender seus habitantes contra
os inimigos ou impedir a ruína de suas cidades e vilas.
Contudo, o Isis poderia ter escolhido um caminho diferente – e
quase o fez – quando sua afiliada síria Jabhat al-Nusra adotou uma abordagem
mais flexível e menos sedenta de sangue, ao expandir seus domínios entre 2011 e
2013. Baghdadi tentou logo tomar o poder, dividir o movimento e garantir que o
território se tornasse fiel à sua brutal visão teológica de um Estado islâmico.
Com Baghdadi na liderança, o Isis nunca mais se levantaria, mas
com ele fora do caminho há uma chance maior de que isso aconteça na Síria e no
Iraque. Em ambos os países, alguns dos ingredientes que levaram à surpreendente
ressurgência do Isis em 2011-2014 estão começando a aparecer: o governo
iraquiano está enfrentando protestos que parecem uma revolta popular,
comandantes militares bem-sucedidos estão sendo demitidos, e árabes sunitas
estão marginalizados e empobrecidos. No nordeste da Síria foi rompida a aliança
dos curdos com os EUA contra o Isis, enquanto as forças dos governos turco e
sírio movem-se em direção à região. É nesse caos que um Ísis renovado pode
criar raízes e florescer.
A morte de Baghdadi pode ter mais impacto nas franquias do Isis
em outras partes do mundo, onde seu prestígio como califa era, muitas vezes,
maior do que nos territórios onde ele governava. Em movimentos religiosos,
muitas vezes é mais fácil reverenciar um mártir morto do que um líder vivo
visivelmente falível.
Líderes políticos e militares de todo o mundo fingem que a
decapitação de uma organização ou movimento hostil resolverá os problemas. Mas
o que realmente mudou após o assassinato de Pablo Escobar, na Colômbia, em
1993, para o negócio da cocaína? A soberba autoelogiosa de Donald Trump pela
morte de Baghdadi pode ser igualmente equivocada.
Fonte: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/a-execucao-de-baghdadi-e-o-autoengano-do-ocidente/
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